19 de dezembro de 2008

Matéria: Jornal Comércio do Seixal e Sesimbra

Os idosos de hoje vêem-se confrontados com outras mágoas bem mais penosas do que o
tempo. Os rostos enrugados não chegam para esconder os factos, de quem mais sente na pele o
fenómeno do abandono e exclusão. O «Comércio» visitou o Lar São Mateus, em Fernão Ferro,onde confirmou de perto essa realidade, em plena quadra natalícia.

Por vezes sozinhos, noutros
momentos acompanhados por
quem partilha a mesma dor. Algures
num corredor, numa cadeira de
rodas, noutros momentos, em grupo
em frente à televisão. São vários
os idosos que em lares, casas de acolhimento
e unidades hospitalares,
vivem segundo a segundo mais um
dia das suas vidas, presos no tempo,
nas histórias do seu passado e com
saudades dos seus familiares.
Nos olhos, calmos e saudosos,
abate-se uma tristeza profunda. A
do isolamento e do abandono por
parte dos seus familiares, que mesmo
em época natalícia teimam em
esquecer os seus. No Lar de São
Mateus, situado em Fernão Ferro, o
panorama não é tão desolador, porém
existem casos do género.
À conversa com a Dra. Viviane Gondim Silva,
directora técnica da instituição, descobrem-
se algumas histórias. “Há
pessoas que pura e simplesmente
são recusados pela sua família. Temos
uma grande procura por parte
da Segurança Social para fazer acolhimentos,
dos quais existem muitos
casos de abandono familiar”, revela.
Seja por motivos meramente
profissionais, dificuldades financeiras,
ou porque simplesmente preferem
esquecer os seus, são muitas
as famílias que abandonam os seus
idosos, como peças obsoletas.
Por todo o país repetem-se relatos
de literal abandonado em unidades
hospitalares, onde nem a morte
os visita. Lares privados, casas de
apoio social e instituições de solidariedade
completamente lotados, são
para muitos idosos a última morada
a quem chamam lar e mesmo até
família.
“Há pessoas que vêm para ficar.
Muitos gostariam de estar com a
sua família, mas não têm essa possibilidade.
Nós acabamos por ser um
pouco a família deles, e eles sentem
isso”, diz a responsável, recordando
o trabalho crucial dos funcionários
da sua instituição que, mesmo em
dia de Consoada, abrem mão das
famílias para poder estar com os
utentes do Lar São Mateus.
Com a quadra natalícia à porta,
são muitos os casos de tristeza nos
corredores do lar. Pessoas a quem a
saudade aperta, pelo facto de não
esquecerem quem se esquecem deles.
“É uma época muito triste. Eles
sentem muito a ausência dos familiares
e sentem-se sozinhos.
Quando se fala no Natal muito
estão quase sempre a chorar. Mas
nós tentamos trazer o espírito do
Natal para próximo deles, para dentro
do lar”, explica Dra. Viviane,
partilhando que algumas iniciativas
organizadas nesta quadra, como
a construção da Árvore de Natal,
fazem com que alguns destes casos
se sintam cada vez mais integrados
num ambiente familiar.
O fenómeno alastra-se um pouco
por todo o país. Cada vez com mais
frequência, os idosos são condicionados
a passar a quadra natalícia
longe dos seus, em casas de apoio
social como é exemplo do Lar São
Mateus. Instituições que com o
passar do tempo transformam-se
em casas e que são hoje a melhor
opção para idosos que caem, por
infortúnio da vida, nas teias da solidão.
“Estamos a par do que se passa
e realmente é dramático. Assusta
muito imaginar que a nossa sociedade
abandona as pessoas quando
elas mais precisam.
Trazer as pessoas para um lar, penso que é uma ideia muito
válida, mas o abandono familiar é
completamente diferente. Tentamos
falar com as famílias e chamá-los
até junto deles, avulta a Dra. Viviane,
sublinhando que na maioria dos
casos existe um bom retorno fruto
desses contactos, mas por vezes não
são de todo possíveis.

Perto da árvore de Natal no átrio
principal da instituição, muitos esperam
a vez das suas visitas.
Por entre a azáfama diária, de
pequenos-almoços, tratamentos
de higiene, cuidados médicos e fisioterapias,
há sempre tempo para
o convívio diário entre os utentes.
Momentos que para alguns é essencial
para fugir à rotina, quanto
mais não seja para dar dois dedos
de conversa. “É uma alegria imensa
quando têm visitas. Para eles é muito importante,
porque assim não sentem tanto
a solidão”, refere Dra. Viviane.
A senhora Manuela, de 86 anos
de idade, uma das residentes, falanos
por entre os cabelos brancos e
um olhar tímido, de como veio para
à instituição. Sem filhos, e com o
falecimento do marido ainda muito
presente na sua memória, viu-se subitamente
pressa a uma solidão até
então desconhecida.
Apesar disso, e já há três anos no
lar, a senhora Manuela ainda não
passou um Natal sem a família.
Caso que embora não sendo único,
não esconde a realidade de outros
utentes.
Segundo dados do Instituto Nacional
de Estatísticas, as projecções
sobre a população residente em Portugal,
entre o ano de 2000 e 2050,
apontam para um envelhecimento
contínuo da população, com consequências
graves, quer para os níveis
de fecundidade, abaixo do limiar de
substituição das gerações, quer para
toda uma série de questões sociais
adjacentes, como a carência de instituições
para colmatar esse crescimento.
Dados que aparentemente podem
não querer dizer muito, mas que, a
comprovarem-se, colocam um problema
para Portugal, que terá num
futuro próximo um assunto sério
para resolver. Se as taxas de envelhecimento
populacional continuarem
a aumentar, os mecanismos e
soluções já existentes, poderão não
ser suficientes.
Até porque, na prática, casos de
abandono têm necessariamente de
ter acompanhamento especial. “São
pessoas muito carentes psicologicamente,
tristes e que sentem essa
recusa. Muitos sentem-se abandonados.
Não querem conversar e ter
contactos com outras pessoas e ficam
completamente descompensados
psicologicamente”, revela Dra.
Viviane, considerando que o Lar
de São Mateus, a par de outras instituições
consegue substituir, em
determinados momentos, algo tão
importante como a família.
“Penso que sim. Nós tentamos
dar apoio e assistência para que as
pessoas se sintam em casa. Acho
que a amizade que os utentes fazem
cá dentro (lar), é muito importante,
pois permite criar raízes”, acrescenta
a responsável.
O crescente fenómeno social
que empurra os idosos para o seu
isolamento e a contínua prática de
abandono e negligência por parte
da sociedade em geral, é uma realidade
escondida por entre as rugas
de quem sofre na pele o fardo da
idade.
Um problema social de fundo
para resolver no futuro. “O Estado
deveria ter um papel fundamental
nesta matéria”, diz Dra. Viviane,
revelando neste particular o bom
trabalho da Segurança Social no
acompanhamento célere que executa,
embora haja quem pense o contrário.
“ O futuro é preocupante. É
um assunto que a sociedade, e até
mesmo a imprensa, deveria chamar
mais à atenção para que se tomasse
consciência da importância dos
idosos, do arsenal de cultura e experiência
que têm e da importância
que fazem às famílias”, acrescenta a
responsável.
O Lar São Mateus, situado em
Fernão Ferro, é um dos muitos
exemplos que revela parte da realidade
social inerente aos idosos.
Com a capacidade para receber
perto de 80 utentes, esta unidade
está completamente lotada e alberga
idosos com uma média de idades
entre os 85 e 86 anos, dos quais alguns
estão identificados como casos
de abandono.
A velhice toca a todos, a seu tempo
é certo, e coloca à nossa frente
questões bem mais preocupantes do
que as rugas no espelho. O problema
do envelhecimento não é apenas
um problema demográfico que
afecta Portugal, mas sim a grande
maioria dos países europeus desenvolvidos.

Bruno Rodrigues Martins

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